O material deste post foi gentilmente cedido pela equipe Primeiro Plano.
Com 18 longas-metragens, Bruno Barreto é um dos mais bem-sucedidos cineastas brasileiros. Dirigiu seu primeiro filme, Tati, a Garota em 1972, aos 17 anos, seguido de A Estrela Sobe e Dona Flor e Seus Dois Maridos, o maior sucesso de bilheteria do cinema brasileiro de todos os tempos com mais de 12 milhões de espectadores.
Entre seus filmes, destacam-se também Romance da Empregada (com Betty Faria, Daniel Filho e Brandão Filho), O Que é Isso, Companheiro?, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1998, Bossa Nova (com Amy Irving e Antonio Fagundes), uma prova de amor ao Rio de Janeiro, cidade em que nasceu, e O Casamento de Romeu e Julieta, assistido por mais de um milhão de espectadores.
A partir de 1990, dividiu sua carreira de diretor entre o Brasil e os Estados Unidos, onde realizou seis longas com grandes astros do cinema americano, como Robert Duvall, Andy Garcia, Kevin Spacey e Amy Irving em A Show of Force (Assassinato sob Duas Bandeiras), Dennis Hopper e Amy Irving em Carried Away (Atos de Amor), Gwyneth Paltrow e Mike Myers em View from the Top (Voando Alto).
Em 2005, Bruno Barreto voltou a viver no Brasil e radicou-se em São Paulo, cenário de seus dois últimos filmes – O Casamento de Romeu e Julieta e Caixa Doi$.
Em 2006, estreou como diretor de teatro com a montagem brasileira da peça premiada com o Pullitzer de melhor drama e Tony (Oscar da Broadway) de melhor peça em 2005, Dúvida, de John Patrick Shanley (dramaturgo premiado com o Oscar de melhor roteiro original pelo filme O Feitiço da Lua em 1988).
Seu próximo filme - A Arte de Perder - com roteiro de Carolina Kotscho abordará a vida da norte-americana Elizabeth Bishop, considerada uma das maiores poetisas de língua inglesa, e sua longa relação com a brasileira Lota de Macedo Soares.
Entrevista:
Como surgiu a idéia de fazer ÚLTIMA PARADA 174? Em junho de 2000, quando ocorreu o seqüestro do ônibus em plena área urbana no Rio de Janeiro e sua transmissão ao vivo paralisou o Brasil, eu vivia em Nova York. Fiquei sabendo o que tinha acontecido pela imprensa. Em 2002, quando assisti ao documentário Ônibus 174, no qual minha filha trabalhou como assistente de produção, fiquei impactado e liguei imediatamente para o diretor José Padilha. Disse que estava desconcertado e cheio de perguntas, sobretudo quanto à mulher que assumiu Sandro como filho e foi a única pessoa presente ao seu enterro. Por que aquela mulher, tão simples, tão forte, mas também tão machucada, segurando uma rosa vermelha, estava convencida que era a mãe do Sandro?
E o que você descobriu? Para começar, Padilha me disse que eu tinha acertado na mosca – sem dúvida a vida daquela mulher poderia ser um filme à parte. Depois de pesquisar, descobri que ela tivera um filho chamado Alessandro cujo pai ela não tinha certeza quem era. Todos os dias de manhã, ela saía para o trabalho e deixava o menino com a vizinha. Um dia, ao voltar, a vizinha e Alessandro tinham desaparecido. Ela passou a viver obcecada pela idéia de recuperar o filho. Um dia encontrou Sandro e o ‘adotou’. Fiquei tomado pela idéia de uma mãe em busca de um filho perdido e de um filho que precisava de uma mãe. O drama dessas duas pessoas em busca de afeto e que tentam sobreviver em condições totalmente desfavoráveis poderia acontecer em qualquer lugar e qualquer época – na Inglaterra de Charles Dickens, na França de Victor Hugo, no Brasil, no século XXI.
Como foi o desenvolvimento do projeto? Com a idéia definida de falar dessa tripla orfandade – de uma mãe órfã de um filho, de um filho órfão de mãe, e ambos órfãos sociais - procurei Bráulio Mantovani. Apesar de ter sido o roteirista de Cidade de Deus que aborda a violência no Rio de Janeiro, na história que eu queria contar, a violência seria apenas pano de fundo, cenário de um drama humano. Nesta abordagem, o episódio do ônibus seria o trágico ápice da trajetória de Sandro, um acontecimento que funcionou como catalisador não apenas de uma tragédia pessoal, mas dos medos de toda uma população. Naquele fim de tarde, no Rio de Janeiro, todo mundo perdeu: o seqüestrador, as vítimas, a polícia e milhares de espectadores que testemunharam o desfecho pela TV.
Você teve algum contato com essa mãe? Eu não tive, mas o Bráulio sim. Eu não queria esse contato para não ficar refém da realidade. A minha pesquisa foi o documentário, e a partir dele passei a imaginar uma história de ficção tendo por base o impacto que ele me causou.
Houve algum pudor em dar um tratamento ficcional a um fato real tão marcante? De forma nenhuma. Muitas vezes, quando assistimos o noticiário na TV ou lemos os jornais, ficamos em estado de total perplexidade. E na maior parte do tempo, a realidade é totalmente surreal. Ironicamente, muitas vezes, uma abordagem ficcional dos fatos pode ajudar a tentar organizar um pouco a realidade e dessa forma, começar a entendê-la.
A história de Sandro e de sua mãe adotiva estão impregnadas de alta voltagem emocional - rejeição, ódio, amor, a possibilidade (ou não) de redenção. Sem falar que a história de Sandro é tristemente emblemática da trajetória dos menores abandonados, entregues à própria sorte e às leis da rua, com passagens por instituições e, mais tarde, prisões. Além disso, Sandro foi um sobrevivente da chacina da Candelária. Como você lidou com essas questões? Sem medo de olhar a emoção de frente, não para manipular o espectador, mas na tentativa de radiografar os sentimentos dos personagens principais. O maior desafio foi escapar do melodrama. Eu queria tentar entender o que os personagens principais sentiram e, se possível, propor uma leitura objetiva da emoção sem cair em um resultado frio, cartesiano. Eu não quis reconstruir ou mostrar uma realidade distante, mas criar personagens que provocassem uma identificação e um envolvimento do espectador. Não se pode julgar essas pessoas. Eu não sei quais são as suas necessidades afetivas e as aceitei com todas as suas complexidades e contradições. No caso da chacina da Candelária, por exemplo, toda a filmagem foi feita do ponto de vista de Sandro e o maior desafio foi recriar o impacto do que aconteceu sem um tom espetacular, sensacionalista.
Apesar da carga dramática dos personagens, eles não apresentam um perfil maniqueísta? Sem dúvida, este é um ponto fundamental. Procurei construir personagens matizados não apenas nesse, mas em todos os meus filmes. Tenho a expectativa de que o público empatize com os personagens e não apenas simpatize. Que compartilhem de suas vivências, sem julgá-los. Há momentos em que você gosta dos personagens, momentos em que você os odeia, e momentos em que você se sente desconfortável pela identificação com quem, supostamente, não deveria. Acho que um bom filme deve provocar esses sentimentos contraditórios. Há ainda uma outra leitura na trajetória de Sandro que me interessa: a promiscuidade hoje em dia entre realidade e ficção. Esta fronteira tênue é o subtexto de ÚLTIMA PARADA 174, ou seja, de como precisamos ser vísiveis, a qualquer custo, para legitimar nossas existências. E foi isso que Sandro fez em suas últimas horas de vida.
De fato, o seqüestro do ônibus foi transmitido ao vivo para todo o Brasil durante seis horas. Um dos aspectos mais importantes da última seqüência – o episódio do ônibus – é o auge da teatralidade atingida pelo personagem de Sandro. O ônibus com os reféns se transformou no palco daquela macabra performance final de Sandro. Para tornar isso claro visualmente, escolhi filmar todos os exteriores – fora do ônibus – com câmeras de TV, colocando-as exatamente onde estavam quando o fato aconteceu, com um resultado que parecia material de noticiário. E filmei as cenas no interior do ônibus de muitos ângulos, em película, visando uma encenação mais cinematográfica. O resultado foi uma ruptura sutil, mas perceptível entre ficção e realidade. Quando Sandro sai do ônibus usando uma refém como escudo, misturei as cenas de vídeo e filme. A partir desse momento, não era mais possível distinguir entre ficção e realidade – que se misturaram de forma definitiva.
Sem dúvida, a reconstituição do seqüestro impressiona pelo realismo, pelo minucioso detalhamento da evolução dos acontecimentos. A minha preocupação com a reconstituição foi tão grande que chamei o André Batista – policial que negociou com Sandro durante o episódio - para me assessorar em toda a seqüência, que tinha uma parte real e uma ficcional (nunca ninguém entrou naquele ônibus). Os esclarecimentos de Batista foram muito importantes. Ele explicou porque o atirador de elite do BOPE errou o alvo (Sandro) e acertou de raspão a refém: quando o alvo fixa o olhar no atirador, por melhor que ele seja, ele se desconcentra. E Sandro olhou o atirador no olho. Uma curiosidade: Batista é interpretado por André Ramiro, que interpretou o personagem André Matias, inspirado no mesmo André Batista, em Tropa de Elite. Ou seja, o mesmo ator interpretou o mesmo personagem em dois filmes. A partir de que momento você optou por um elenco de atores desconhecidos, sobretudo entre os jovens? Desde o início. Hoje em dia, a vida dos atores conhecidos é tão pública que se perde pelo menos a primeira meia hora de um filme até o espectador conseguir enxergar o personagem. Eu não queria nenhum tipo de ‘bagagem’ entre o público e os personagens, que são sempre a alma da história que estou contando. Em 18 filmes, foi a primeira vez que trabalhei com atores não-profissionais, ou de pouca ou nenhuma experiência. Fiquei tão entusiasmado que cheguei a pensar em não trabalhar mais com ‘profissionais’...
E como foi feita a escolha do elenco? O Rio de Janeiro dispõe de grupos de formação de atores em muitas comunidades carentes, como o Nós do Morro. Os atores principais e figurantes são provenientes desses grupos, como o Michel Gomes (Sandro), Alê Monstro (Marcello Melo Jr.) e Soninha (Gabriela Luiz). Michel tinha 17 anos quando foi escolhido – gostei como ele alternava doçura e raiva no olhar e da forma lúdica com que encarava a representação. Depois de selecionado, eu soube que ele, ainda menino, tinha participado de Cidade de Deus. Já Alê Monstro (Marcello Melo Jr.), estréia no cinema e foi escolhido três semanas antes das filmagens – ele não participou das oficinas, foi direto para os ensaios. A preparação foi feita com um roteiro sem diálogos – eles eram estimulados a propor as falas - e era impressionante como as improvisações se aproximavam dos diálogos escritos. E quanto aos atores profissionais? Atores profissionais contracenando com não-atores é uma das armadilhas mais perigosas para um diretor. Não é à toa que cachorro e criança sempre roubam a cena. Quem não está atuando, mas sendo, sempre ganha. Cris Vianna (Marisa), Anna Cotrim (Walquíria), e Tay Lopes (Jaziel) enfrentaram esse desafio com muita coragem e, sobretudo paciência, se dispondo a participar de todas as oficinas com os atores não profissionais. Só assim consegui que todo o elenco estivesse na mesma clave.
Como foi trabalhar com o diretor de fotografia francês Antoine Heberlé em um filme que retrata uma realidade tão brasileira, filmado nas locações reais em que a história aconteceu? Eu nunca havia trabalhado com um diretor de fotografia tão afinado com a história e os personagens. Eu fotografei todos os meus curtas e operei a câmera nos três primeiros longas que dirigi. Só parei quando pude acompanhar o que estava acontecendo no quadro através do monitor de vídeo. Mesmo assim continuo operando a câmera em todos os meus filmes sempre que a situação permite. Isto gera uma intimidade maior com os atores. Reconheço que sou muito exigente com os fotógrafos, mas isto só ocorre porque sei exatamente o que estão fazendo. O ponto de partida para a iluminação vinha sempre do personagem, da intensidade do momento. Para Antoine, a fonte de luz sempre vem do coração e não de uma janela ou situação geográfica. Não foi um trabalho fácil – houve cenas com muitos figurantes, bastante improvisadas. Considero seu trabalho excepcional – uma fotografia aparentemente naturalista, mas intensamente trabalhada e integrada à dramaturgia. Foram oito semanas de filmagem, entre julho, agosto e setembro de 2007, e utilizamos simultaneamente duas câmeras super-16mm.
Alguns filmes brasileiros recentes falam de violência urbana - como Cidade de Deus e Tropa de Elite. Que relação ÚLTIMA PARADA 174 estabelece com esses filmes? ÚLTIMA PARADA 174 é narrado exclusivamente do ponto de vista dos personagens. Eu queria que o tom épico do filme viesse sobretudo dos sentimentos dos personagens e não da maneira de filmar. Um épico intimista. Nos filmes mencionados, os personagens são mais arquetípicos, a direção mais extrovertida. Gosto muito desses filmes, mas eu diria que são expressionistas – as personagens são olhadas de fora para dentro. Eu quis fazer um filme impressionista.
ÚLTIMA PARADA 174 é seu 18º longa-metragem, que inclui marcos do cinema brasileiro como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1974), até hoje, recorde de bilheteria, e "O que é isso companheiro", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Qual a relação que você estabelece entre ÚLTIMA PARADA 174 e seus filmes anteriores? Gosto especialmente de Romance da Empregada e Carried Away. Talvez eu venha a incluir ÚLTIMA PARADA 174 entre meus preferidos. Só o tempo dirá. Sempre preciso de alguns meses para julgar o filme que acabei de fazer. Mas uma coisa está bem clara: filmei com a liberdade de quem está fazendo o primeiro filme. Após 18 longas, sei que o maior perigo da experiência é engessar a liberdade de criação. Acho que com ÚLTIMA PARADA 174 consegui resgatar essa liberdade – filmei de uma maneira bem solta, abri espaço para improvisação, sobretudo com os atores. Foi uma experiência fascinante.
Em sua filmografia, você alterna dramas e comédias, entre elas seus dois últimos filmes feitos no Brasil - O Casamento de Romeu e Julieta e Caixa Doi$. Como foi voltar a um drama? ÚLTIMA PARADA 174 é um projeto anterior a O Casamento de Romeu e Julieta, e na verdade, sempre transitei entre os dois gêneros: Amor Bandido depois de Dona Flor, Bossa Nova depois de O que é isso, companheiro?, por exemplo. Na verdade, não acho que os gêneros sejam tão estanques – sempre procurei o drama na comédia e o humor na tragédia. ÚLTIMA PARADA 174 tem momentos engraçados. O que me interessa é o comportamento humano – na comédia ou na tragédia, gêneros que andam de mãos dadas.
Em 2000, você realizou uma das odes mais românticas já feitas ao Rio de Janeiro, com Bossa Nova, embalado por música de Tom Jobim. Oito anos depois, você apresenta o oposto daquela situação, com ÚLTIMA PARADA 174. Os dois lados são verdadeiros. No Rio, a beleza da paisagem e o lirismo da Bossa Nova convivem com os dramas diários dos personagens de ÚLTIMA PARADA 174. De certa forma, também tenho essa dualidade: um lado leve, assumidamente romântico e lúdico. O outro, tragicamente intenso, impulsivo, violento. Acho que se poderia dizer que eu e o Rio temos muito em comum.
FILMOGRAFIA DE BRUNO BARRETO
BRASIL
2008 – Última Parada 174
2007 – Caixa Doi$
2004 – O Casamento de Romeu e Julieta
2000 – Bossa Nova
1997 – O Que É Isso, Companheiro?
1987 – O Romance da Empregada
1984 – Além da Paixão
1982 – Gabriela, Cravo e Canela
1980 – O Beijo no Asfalto
1978 – Amor Bandido
1976 – Dona Flor e Seus Dois Maridos
1974 – A Estrela Sobe
1972 – Tati, a Garota
ESTADOS UNIDOS
2003 – View from the Top (Voando Alto)
1998 - One Tough Cop (Entre o Dever e a Amizade)
1995 – Carried Away (Atos de Amor)
1992 – The Heart of Justice (O Coração da Justiça)
1990 – A Show of Force (Assassinato sob Duas Bandeiras)
Entre seus filmes, destacam-se também Romance da Empregada (com Betty Faria, Daniel Filho e Brandão Filho), O Que é Isso, Companheiro?, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1998, Bossa Nova (com Amy Irving e Antonio Fagundes), uma prova de amor ao Rio de Janeiro, cidade em que nasceu, e O Casamento de Romeu e Julieta, assistido por mais de um milhão de espectadores.
A partir de 1990, dividiu sua carreira de diretor entre o Brasil e os Estados Unidos, onde realizou seis longas com grandes astros do cinema americano, como Robert Duvall, Andy Garcia, Kevin Spacey e Amy Irving em A Show of Force (Assassinato sob Duas Bandeiras), Dennis Hopper e Amy Irving em Carried Away (Atos de Amor), Gwyneth Paltrow e Mike Myers em View from the Top (Voando Alto).
Em 2005, Bruno Barreto voltou a viver no Brasil e radicou-se em São Paulo, cenário de seus dois últimos filmes – O Casamento de Romeu e Julieta e Caixa Doi$.
Em 2006, estreou como diretor de teatro com a montagem brasileira da peça premiada com o Pullitzer de melhor drama e Tony (Oscar da Broadway) de melhor peça em 2005, Dúvida, de John Patrick Shanley (dramaturgo premiado com o Oscar de melhor roteiro original pelo filme O Feitiço da Lua em 1988).
Seu próximo filme - A Arte de Perder - com roteiro de Carolina Kotscho abordará a vida da norte-americana Elizabeth Bishop, considerada uma das maiores poetisas de língua inglesa, e sua longa relação com a brasileira Lota de Macedo Soares.
Entrevista:
Como surgiu a idéia de fazer ÚLTIMA PARADA 174? Em junho de 2000, quando ocorreu o seqüestro do ônibus em plena área urbana no Rio de Janeiro e sua transmissão ao vivo paralisou o Brasil, eu vivia em Nova York. Fiquei sabendo o que tinha acontecido pela imprensa. Em 2002, quando assisti ao documentário Ônibus 174, no qual minha filha trabalhou como assistente de produção, fiquei impactado e liguei imediatamente para o diretor José Padilha. Disse que estava desconcertado e cheio de perguntas, sobretudo quanto à mulher que assumiu Sandro como filho e foi a única pessoa presente ao seu enterro. Por que aquela mulher, tão simples, tão forte, mas também tão machucada, segurando uma rosa vermelha, estava convencida que era a mãe do Sandro?
E o que você descobriu? Para começar, Padilha me disse que eu tinha acertado na mosca – sem dúvida a vida daquela mulher poderia ser um filme à parte. Depois de pesquisar, descobri que ela tivera um filho chamado Alessandro cujo pai ela não tinha certeza quem era. Todos os dias de manhã, ela saía para o trabalho e deixava o menino com a vizinha. Um dia, ao voltar, a vizinha e Alessandro tinham desaparecido. Ela passou a viver obcecada pela idéia de recuperar o filho. Um dia encontrou Sandro e o ‘adotou’. Fiquei tomado pela idéia de uma mãe em busca de um filho perdido e de um filho que precisava de uma mãe. O drama dessas duas pessoas em busca de afeto e que tentam sobreviver em condições totalmente desfavoráveis poderia acontecer em qualquer lugar e qualquer época – na Inglaterra de Charles Dickens, na França de Victor Hugo, no Brasil, no século XXI.
Como foi o desenvolvimento do projeto? Com a idéia definida de falar dessa tripla orfandade – de uma mãe órfã de um filho, de um filho órfão de mãe, e ambos órfãos sociais - procurei Bráulio Mantovani. Apesar de ter sido o roteirista de Cidade de Deus que aborda a violência no Rio de Janeiro, na história que eu queria contar, a violência seria apenas pano de fundo, cenário de um drama humano. Nesta abordagem, o episódio do ônibus seria o trágico ápice da trajetória de Sandro, um acontecimento que funcionou como catalisador não apenas de uma tragédia pessoal, mas dos medos de toda uma população. Naquele fim de tarde, no Rio de Janeiro, todo mundo perdeu: o seqüestrador, as vítimas, a polícia e milhares de espectadores que testemunharam o desfecho pela TV.
Você teve algum contato com essa mãe? Eu não tive, mas o Bráulio sim. Eu não queria esse contato para não ficar refém da realidade. A minha pesquisa foi o documentário, e a partir dele passei a imaginar uma história de ficção tendo por base o impacto que ele me causou.
Houve algum pudor em dar um tratamento ficcional a um fato real tão marcante? De forma nenhuma. Muitas vezes, quando assistimos o noticiário na TV ou lemos os jornais, ficamos em estado de total perplexidade. E na maior parte do tempo, a realidade é totalmente surreal. Ironicamente, muitas vezes, uma abordagem ficcional dos fatos pode ajudar a tentar organizar um pouco a realidade e dessa forma, começar a entendê-la.
A história de Sandro e de sua mãe adotiva estão impregnadas de alta voltagem emocional - rejeição, ódio, amor, a possibilidade (ou não) de redenção. Sem falar que a história de Sandro é tristemente emblemática da trajetória dos menores abandonados, entregues à própria sorte e às leis da rua, com passagens por instituições e, mais tarde, prisões. Além disso, Sandro foi um sobrevivente da chacina da Candelária. Como você lidou com essas questões? Sem medo de olhar a emoção de frente, não para manipular o espectador, mas na tentativa de radiografar os sentimentos dos personagens principais. O maior desafio foi escapar do melodrama. Eu queria tentar entender o que os personagens principais sentiram e, se possível, propor uma leitura objetiva da emoção sem cair em um resultado frio, cartesiano. Eu não quis reconstruir ou mostrar uma realidade distante, mas criar personagens que provocassem uma identificação e um envolvimento do espectador. Não se pode julgar essas pessoas. Eu não sei quais são as suas necessidades afetivas e as aceitei com todas as suas complexidades e contradições. No caso da chacina da Candelária, por exemplo, toda a filmagem foi feita do ponto de vista de Sandro e o maior desafio foi recriar o impacto do que aconteceu sem um tom espetacular, sensacionalista.
Apesar da carga dramática dos personagens, eles não apresentam um perfil maniqueísta? Sem dúvida, este é um ponto fundamental. Procurei construir personagens matizados não apenas nesse, mas em todos os meus filmes. Tenho a expectativa de que o público empatize com os personagens e não apenas simpatize. Que compartilhem de suas vivências, sem julgá-los. Há momentos em que você gosta dos personagens, momentos em que você os odeia, e momentos em que você se sente desconfortável pela identificação com quem, supostamente, não deveria. Acho que um bom filme deve provocar esses sentimentos contraditórios. Há ainda uma outra leitura na trajetória de Sandro que me interessa: a promiscuidade hoje em dia entre realidade e ficção. Esta fronteira tênue é o subtexto de ÚLTIMA PARADA 174, ou seja, de como precisamos ser vísiveis, a qualquer custo, para legitimar nossas existências. E foi isso que Sandro fez em suas últimas horas de vida.
De fato, o seqüestro do ônibus foi transmitido ao vivo para todo o Brasil durante seis horas. Um dos aspectos mais importantes da última seqüência – o episódio do ônibus – é o auge da teatralidade atingida pelo personagem de Sandro. O ônibus com os reféns se transformou no palco daquela macabra performance final de Sandro. Para tornar isso claro visualmente, escolhi filmar todos os exteriores – fora do ônibus – com câmeras de TV, colocando-as exatamente onde estavam quando o fato aconteceu, com um resultado que parecia material de noticiário. E filmei as cenas no interior do ônibus de muitos ângulos, em película, visando uma encenação mais cinematográfica. O resultado foi uma ruptura sutil, mas perceptível entre ficção e realidade. Quando Sandro sai do ônibus usando uma refém como escudo, misturei as cenas de vídeo e filme. A partir desse momento, não era mais possível distinguir entre ficção e realidade – que se misturaram de forma definitiva.
Sem dúvida, a reconstituição do seqüestro impressiona pelo realismo, pelo minucioso detalhamento da evolução dos acontecimentos. A minha preocupação com a reconstituição foi tão grande que chamei o André Batista – policial que negociou com Sandro durante o episódio - para me assessorar em toda a seqüência, que tinha uma parte real e uma ficcional (nunca ninguém entrou naquele ônibus). Os esclarecimentos de Batista foram muito importantes. Ele explicou porque o atirador de elite do BOPE errou o alvo (Sandro) e acertou de raspão a refém: quando o alvo fixa o olhar no atirador, por melhor que ele seja, ele se desconcentra. E Sandro olhou o atirador no olho. Uma curiosidade: Batista é interpretado por André Ramiro, que interpretou o personagem André Matias, inspirado no mesmo André Batista, em Tropa de Elite. Ou seja, o mesmo ator interpretou o mesmo personagem em dois filmes. A partir de que momento você optou por um elenco de atores desconhecidos, sobretudo entre os jovens? Desde o início. Hoje em dia, a vida dos atores conhecidos é tão pública que se perde pelo menos a primeira meia hora de um filme até o espectador conseguir enxergar o personagem. Eu não queria nenhum tipo de ‘bagagem’ entre o público e os personagens, que são sempre a alma da história que estou contando. Em 18 filmes, foi a primeira vez que trabalhei com atores não-profissionais, ou de pouca ou nenhuma experiência. Fiquei tão entusiasmado que cheguei a pensar em não trabalhar mais com ‘profissionais’...
E como foi feita a escolha do elenco? O Rio de Janeiro dispõe de grupos de formação de atores em muitas comunidades carentes, como o Nós do Morro. Os atores principais e figurantes são provenientes desses grupos, como o Michel Gomes (Sandro), Alê Monstro (Marcello Melo Jr.) e Soninha (Gabriela Luiz). Michel tinha 17 anos quando foi escolhido – gostei como ele alternava doçura e raiva no olhar e da forma lúdica com que encarava a representação. Depois de selecionado, eu soube que ele, ainda menino, tinha participado de Cidade de Deus. Já Alê Monstro (Marcello Melo Jr.), estréia no cinema e foi escolhido três semanas antes das filmagens – ele não participou das oficinas, foi direto para os ensaios. A preparação foi feita com um roteiro sem diálogos – eles eram estimulados a propor as falas - e era impressionante como as improvisações se aproximavam dos diálogos escritos. E quanto aos atores profissionais? Atores profissionais contracenando com não-atores é uma das armadilhas mais perigosas para um diretor. Não é à toa que cachorro e criança sempre roubam a cena. Quem não está atuando, mas sendo, sempre ganha. Cris Vianna (Marisa), Anna Cotrim (Walquíria), e Tay Lopes (Jaziel) enfrentaram esse desafio com muita coragem e, sobretudo paciência, se dispondo a participar de todas as oficinas com os atores não profissionais. Só assim consegui que todo o elenco estivesse na mesma clave.
Como foi trabalhar com o diretor de fotografia francês Antoine Heberlé em um filme que retrata uma realidade tão brasileira, filmado nas locações reais em que a história aconteceu? Eu nunca havia trabalhado com um diretor de fotografia tão afinado com a história e os personagens. Eu fotografei todos os meus curtas e operei a câmera nos três primeiros longas que dirigi. Só parei quando pude acompanhar o que estava acontecendo no quadro através do monitor de vídeo. Mesmo assim continuo operando a câmera em todos os meus filmes sempre que a situação permite. Isto gera uma intimidade maior com os atores. Reconheço que sou muito exigente com os fotógrafos, mas isto só ocorre porque sei exatamente o que estão fazendo. O ponto de partida para a iluminação vinha sempre do personagem, da intensidade do momento. Para Antoine, a fonte de luz sempre vem do coração e não de uma janela ou situação geográfica. Não foi um trabalho fácil – houve cenas com muitos figurantes, bastante improvisadas. Considero seu trabalho excepcional – uma fotografia aparentemente naturalista, mas intensamente trabalhada e integrada à dramaturgia. Foram oito semanas de filmagem, entre julho, agosto e setembro de 2007, e utilizamos simultaneamente duas câmeras super-16mm.
Alguns filmes brasileiros recentes falam de violência urbana - como Cidade de Deus e Tropa de Elite. Que relação ÚLTIMA PARADA 174 estabelece com esses filmes? ÚLTIMA PARADA 174 é narrado exclusivamente do ponto de vista dos personagens. Eu queria que o tom épico do filme viesse sobretudo dos sentimentos dos personagens e não da maneira de filmar. Um épico intimista. Nos filmes mencionados, os personagens são mais arquetípicos, a direção mais extrovertida. Gosto muito desses filmes, mas eu diria que são expressionistas – as personagens são olhadas de fora para dentro. Eu quis fazer um filme impressionista.
ÚLTIMA PARADA 174 é seu 18º longa-metragem, que inclui marcos do cinema brasileiro como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1974), até hoje, recorde de bilheteria, e "O que é isso companheiro", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Qual a relação que você estabelece entre ÚLTIMA PARADA 174 e seus filmes anteriores? Gosto especialmente de Romance da Empregada e Carried Away. Talvez eu venha a incluir ÚLTIMA PARADA 174 entre meus preferidos. Só o tempo dirá. Sempre preciso de alguns meses para julgar o filme que acabei de fazer. Mas uma coisa está bem clara: filmei com a liberdade de quem está fazendo o primeiro filme. Após 18 longas, sei que o maior perigo da experiência é engessar a liberdade de criação. Acho que com ÚLTIMA PARADA 174 consegui resgatar essa liberdade – filmei de uma maneira bem solta, abri espaço para improvisação, sobretudo com os atores. Foi uma experiência fascinante.
Em sua filmografia, você alterna dramas e comédias, entre elas seus dois últimos filmes feitos no Brasil - O Casamento de Romeu e Julieta e Caixa Doi$. Como foi voltar a um drama? ÚLTIMA PARADA 174 é um projeto anterior a O Casamento de Romeu e Julieta, e na verdade, sempre transitei entre os dois gêneros: Amor Bandido depois de Dona Flor, Bossa Nova depois de O que é isso, companheiro?, por exemplo. Na verdade, não acho que os gêneros sejam tão estanques – sempre procurei o drama na comédia e o humor na tragédia. ÚLTIMA PARADA 174 tem momentos engraçados. O que me interessa é o comportamento humano – na comédia ou na tragédia, gêneros que andam de mãos dadas.
Em 2000, você realizou uma das odes mais românticas já feitas ao Rio de Janeiro, com Bossa Nova, embalado por música de Tom Jobim. Oito anos depois, você apresenta o oposto daquela situação, com ÚLTIMA PARADA 174. Os dois lados são verdadeiros. No Rio, a beleza da paisagem e o lirismo da Bossa Nova convivem com os dramas diários dos personagens de ÚLTIMA PARADA 174. De certa forma, também tenho essa dualidade: um lado leve, assumidamente romântico e lúdico. O outro, tragicamente intenso, impulsivo, violento. Acho que se poderia dizer que eu e o Rio temos muito em comum.
FILMOGRAFIA DE BRUNO BARRETO
BRASIL
2008 – Última Parada 174
2007 – Caixa Doi$
2004 – O Casamento de Romeu e Julieta
2000 – Bossa Nova
1997 – O Que É Isso, Companheiro?
1987 – O Romance da Empregada
1984 – Além da Paixão
1982 – Gabriela, Cravo e Canela
1980 – O Beijo no Asfalto
1978 – Amor Bandido
1976 – Dona Flor e Seus Dois Maridos
1974 – A Estrela Sobe
1972 – Tati, a Garota
ESTADOS UNIDOS
2003 – View from the Top (Voando Alto)
1998 - One Tough Cop (Entre o Dever e a Amizade)
1995 – Carried Away (Atos de Amor)
1992 – The Heart of Justice (O Coração da Justiça)
1990 – A Show of Force (Assassinato sob Duas Bandeiras)
0 comentários:
Postar um comentário